Psicanalise e Psicofármacos |
Pharmakon e vínculo; melhorando a farmacoterapia psiquiátrica
Breno Serson
Resumo: A partir do conceito grego de pharmakon, que unifica o uso de uma substância medicamentosa às orientações gerais do tratamento dadas pelo médico, explora-se como melhorar a adesão e os resultados dos tratamentos psicofarmacológicos. Com base em uma retórica derivada da antiga ars medica e a partir das transferências iniciais da relação médico-paciente, busca-se um vínculo com o paciente que propicie uma aliança terapêutica, melhorando assim a eficácia da farmacoterapia psiquiátrica.
Unitermos: pharmakon, vínculo, retórica, transferência, psicofármacos.
Title: pharmakon and binding: improving psychiatric pharmacotherapy
Summary: From Greeks conception of pharmakon, which unifies the use of a therapeutic substance to general guidelines of a treatment given by the physician, we explore how to improve adherence and outcomes of psychopharmacological treatments. Based on the ancient ars medica rhetoric and departing from initial transference phenomena within the physician-patient relationship, we seek a binding with the patient, allowing a therapeutic alliance and thus improving the effectiveness of psychiatric pharmacotherapy.
Key words: pharmakon, binding, rhetoric, transference, psycopharmacotherapy.
Título: pharmakon y vínculo: mejorando la eficácia de la farmacoterapia psiquiátrica
Resumen: A partir del concepto griego de pharmakon, que unifica e l uso de una substancia medicamentosa a las orientaciones del tratamiento dadas por el médico, se explora como mejorar la adhesión y los resultados de los tratamientos. En base a uma retórica derivada de la antigua ars medica y a partir de las transferencias iniciales de la relación médico-paciente se busca um vínculo con el paciente que propicie uma alianza terapéutica, mejorando la eficácia de la farmacoterapia psiquiátrica.
Unitermos: pharmakon, vínculo, retórica, transferência, psicofármacos.
"Sócrates: A medicina tem, de certo modo, o mesmo caráter da retórica.
Fedro: Como?
Sócrates: Em ambas é necessário analisar uma natureza (physis): a do corpo em uma, a da alma na outra, não somente como uma rotina e a uma prática, mas como uma técnica (téckné), para ministrar ao corpo remédios e alimentos e produzir assim, nele, saúde e força; e para a alma, raciocínios (lógoi) e ocupações justas para lhe transmitir a convicção que queiras e a virtude que é desejável". Fedro (Platão 2005: 257).
Uma acepção de pharmakon
No enorme legado da medicina hipocrática encontramos o conceito de pharmakon, citado por Platão no Fedro e retomado, em múltiplas acepções em Derrida (Derrida 2005: 72; veja também Coura 2002). No presente texto, pharmakon é uma substância, vegetal, animal ou mineral que uma vez ingerida ou aplicada sobre uma pessoa - e indissociada da palavra do médico que a prescreve - tem um de três efeitos segundo a dose: (i) é inócua; (ii) age como um medicamento; (iii) age como um veneno.
Nesta acepção médica, nem a cicuta que mata Sócrates, nem a planta ou areia sem ação terapêutica, aplicadas pelo charlatão, são pharmakon.
Nenhuma substância medicamentosa é o melhor pharmakon possível sem o vínculo de confiança entre médico e paciente, sem a suave e paciente retórica que convence o paciente da pertinência (ou inevitabilidade, na falta de melhor) de usar certa substância no alívio ou cura do que o aflige, ou o que o afligirá certamente se não tratado (ex: hipertensão arterial assintomática).
Não temos um bom pharmakon sem as palavras de orientação sobre dosagens, tempo de uso, efeitos colaterais, expectativas e riscos do tratamento e, sobretudo, sem que o paciente valide e qualifique o diagnóstico e a conduta do médico .
Tais palavras sobre posologia e efeitos esperados dos medicamentos são, todavia, apenas partes da "palavra afetiva empenhada" que pode definir o pharmakon. O diálogo do médico com a pessoa que se torna paciente já é o início da prescrição do medicamento. Assim, o produto comercial hoje comprado em uma drogaria pode chegar a ser pharmakon quando associado à palavra e à relação emocional com o médico.
O pharmakon só existe plenamente quando o paciente usa a medicação (e também a dieta, ginástica ou cirurgia) do modo que o médico acredita ser a melhor, convencendo através da melhor retórica o paciente a agir terapeuticamente em próprio favor e dos seus.
Para isto o médico percorre junto ao paciente o clássico ciclo da consulta: investiga sintomas e sinais do paciente, configura síndromes, formula uma hipótese diagnóstica e assim um prognóstico, propondo enfim um tratamento, do qual pode fazer parte a substância medicamentosa.
Na medida do possível, o médico deve partilhar com o paciente o raciocínio clínico envolvido no ciclo da consulta, bem como a conclusão deste raciocínio (lógos), isto é, o diagnóstico e tratamento propostos. No contexto de uma relação humana benevolente, o paciente se convence a tomar o pharmakon na posologia adequada, dispõe-se a monitorar junto ao médico os efeitos terapêuticos e colaterais, retorna às consultas e... melhora.
Um pouco de Filosofia na clínica
Acredito em um pragmatismo médico enquanto soma das conseqüências benéficas sobre o paciente, provocadas pela ars rethorica do médico. Clinicar ganha assim a influência da leitura que faço de C. S. Peirce, que por sua vez relê os filósofos medievais e o espírito aristotélico da primeira ciência.
Considero o belief peirceano ponto de partida para atitude do paciente na adesão ao tratamento, já que este é constituído pelas "...conseqüências práticas pensáveis como resultante necessariamente da verdade da concepção" (Peirce 1980: 7). Se meu belief é que a concepção "pôr a mão no fogo" danifica o corpo e dói muito, entre outras conseqüências...
A rethorica, como Peirce chama a parte mais complexa de sua Lógica, passa a ser parte do pharmakon aplicado pelo médico, a serviço do compromisso ético com o bem-estar do paciente (cf. o que diz Sócrates na epígrafe).
Tal é a teckné do encontro eu-tu, lógico e afetivo, instrumentando a prática da clínica cotidiana.
Almeja-se o melhor tratamento possível, partilhando rg.)o, busca assim m a medicaçobjeConvencerCCCC o raciocínio clínico com o paciente, em suas premissas e conclusões, adaptando-as ao universo cultural de cada um, e assim fazendo o paciente entender os prós e contras de cada fase ou medida do tratamento. O tom afetivo e beneficente ao paciente é o que funda a aliança terapêutica em um vínculo e que garante a adesão ao tratamento, por mais sofrido que seja o padecer e mais amargo que seja o remédio.
Como o médico no Platão das Leis, almeja-se "...instruir o paciente... sem nada prescrever-lhe até que tenha conseguido convencê-lo da necessidade disto; e então, ajudado pela persuasão, tranqüiliza e prepara continuamente o seu doente, até conseguir levá-lo pouco a pouco à saúde". (Platão, apud Coura 2001: 72).
Pharmakon e clínica psiquiátrica atual
Pela primeira vez na história dispomos de medicamento que alteram dramaticamente o curso clínico natural de depressões uni- ou bipolares (por exemplo o lítio e a fluoxetina, introduzidos em 1949 e em 1988, respectivamente), mudando potencialmente a vida dos pacientes antes condenados a recorrências e cronificações.
Mais de 2500 anos depois da escola hipocrática, o psiquiatra que hoje prescreve fluoxetina, lítio (ou o último lançamento em "estabilizador do humor"...) se defronta na plenitude com a questão do pharmakon. Na nova era do medicamento psiquiátrico eficiente, a diferença entre a melhor melhora possível, o resultado pífio ou a piora (por não tratar adequadamente) subordina-se significativamente ao efeito pharmakon que o médico possa proporcionar ao medicamento.
Isto é particularmente importante no tratamento de quadros ansiosos e depressivos - como TOC, fobias, ansiedade tônica (TAG) ou fásica (pânico) e de depressões de vários matizes, que compõem a maior casuística da minha prática clínica nos últimos quase 15 anos.
Tratar tais quadros supõe adesão a um tratamento farmacológico longo (da escala de meses ou anos), lidando com incertezas nas respostas terapêuticas, com efeitos colaterais, com situações de crises psicológicas, com necessidades de aumentos e diminuições de doses. Tudo isto deve ser continuamente reavaliado pelo médico e paciente, no contexto da aliança terapêutica.
O tratamento dos quadros ansiosos e depressivos compreende também medidas gerais multidisciplinares e não farmacológicas (psicoterapia, mudanças de estilo de vida, etc.), medidas que garantem melhores prognósticos em longo prazo que o tratamento somente farmacológico.
Mesmo com uma boa resposta inicial, como é o caso dos antidepressivos modernos, o curso clínico flutua e as remissões não são estáveis. Sabemos o quanto a adesão ao tratamento vai ficando problemática ao longo da melhora clínica e sobretudo na profilaxia de novos episódios (quantos bipolares não vemos entrar em crise por interromperem a medicação de anos).
O clínico, sempre pensando no longo prazo, busca ainda assim completar bem os ciclos do tratamento (introdução, titulação de doses, manutenção, retirada), ao mesmo tempo em que orienta o paciente na identificação precoce de futuras e possíveis recorrências.
Há ainda que diagnosticar e corrigir outras condições médicas por vezes simples (p. ex. em geriatria checar aparelhos auditivos, dentaduras e óculos), nutricionais, regimes de sono, trabalho e sedentarismo, consumo não comunicado de medicamentos e drogas (p. ex. analgésicos, álcool, relaxantes musculares, vasoconstritores nasais).
Enfim, há que lidar com emoções, sentimentos, fantasias, expectativas, com a condição existencial e humana, especificidades da psiquiatria que fazem o conceito de pharmakon tão significativo quanto o moderno arsenal de substâncias terapêuticas.
Como já entendia a medicina hipocrática, "A acção curativa dependerá de um triplo "que", que doença, que doente, que remédio" (Carvalho 2004: 58).
Do pharmakon ao vínculo
Não é difícil a passagem da "palavra do médico" grega à relação médico-paciente tal como é hoje entendida. A substância farmacológica ou cirúrgica era até 50 ou 100 anos atrás tão rudimentar que a Medicina devia muitíssimo às palavras do médico antigo, humanistas, vocacionadas, retóricas no bem do paciente, quase sagradas (numinosas, cf. Calderoni 2002 ) sendo ainda assim profanas (no sentido de não mais religiosas nem mágicas).
Pois hoje dispomos de pouco tempo ou ambiente para estas palavras lapidadas pelos antigos, ainda que entendidas modernamente, por exemplo, como o "estilo das relações vinculares" ou como "transferência na relação médico-paciente" (cf. Zimerman 1992: 66-68 e outros autores da psicologia médica e psicossomática de base psicanalítica).
Na prática clínica real, nos nossos consultórios, hospitais e ambulatórios de psiquiatria, há pouquíssimo pharmakon. Há que lamentar o enorme retrocesso na s relações médico-paciente: contra a tékhné iatrós ou ars medica milenar, o que são os 20 ou 30 anos dos psicotrópicos modernos, do SaúdeBradesco, SUS, ou qualquer managed care, da fria e presunçosa psiquiatria estilo DSM, com suas escalas e polifarmácia, com seu braço psicológico neo-comportamental?
Através da medicina psicossomática (cf. Eksterman 1992), mesmo a já centenária psicanálise contemplou as dinâmicas inconscientes do médico e do paciente na relação terapêutica que constitui o pharmakon. O jovem Freud, enquanto médico das histéricas que a medicina vienense não conseguia ministrar o pharmakon convencional, vê-se obrigado a contemplar a transferência que tanto intimidou Breuer.
Além da racionalidade bem intencionada da ars rethorica do médico, há assim todo o jogo especular dos inconscientes - transferências e contra transferências - que a psicanálise revelou (cf. Viderman 1990: 239-295). Embora não discutido neste artigo, tal jogo não tem como ser erradicado ou condenado à irrelevância, por exemplo, por não se mensurar pelo metro supremo atribuído ao estatístico e meta-analítico das publicações nos journals, como faz a psiquiatria DSM hegemônica.
Todos perdem em deixar para um segundo plano a relação médico-paciente, o vínculo baseado na compreensão humana e psicológica do paciente por parte do médico. Em torno de tal vínculo, fazendo o melhor uso das transferências inevitáveis, deve idealmente configurar-se a aliança terapêutica, potencializando a eficácia farmacológica da psiquiatria atual.
Acredito que o psiquiatra clínico, desde que disponha de condições mínimas de trabalho, deve integrar o tratamento farmacológico ao pharmakon em mais de um sentido.
Trata-se, por exemplo , de conseguir encaminhar o paciente a uma psicoterapia que é frequentemente indicada, além de se prescrever uma série de medidas gerais individualizadas a serem adotadas pelo paciente, em prol da descronificação e da desmedicalização possível, tais como mudanças de regimes de vida, atividades físicas, outros cuidados médicos, etc.
Busca-se fazer, p. ex., o ex-ansioso(a) tomando cronicamente muito café, calmantes "tarja preta" e remédios para gastrite e passando com freqüência pelo Pronto-Socorro, tratar-se com um bom medicamento para ansiedade por um ou dois anos e ter alta médica, cuidando-se com psicoterapia, yoga, tendo mudado o padrão de consumo de substâncias, mudado a vida relacional e/ou do trabalho.
Sabemos o quanto isto é difícil na prática: hábitos arraigados, transferências negativas e dependências muito ativas, ganhos secundários e gozos na doença, um entorno sócio-cultural (alienação, consumo...) que pode ser descrito como desfavorável se não perverso; tudo isto nos dificulta. Ainda assim devemos tentar prescrever psicoterapia e regimes de vida harmonizados além do pharmakon.
O conceito de pharmakon pode assim ser ampliado à palavra do médico no tratamento como um todo. Dado o caráter recorrente dos quadros ansiosos e depressivos, busca-se ao longo de aproximadamente 10 a 15 consultas em 2 anos, conduzir retoricamente (cf. a epígrafe de Platão acima) uma parte significativa da amostra de pacientes a cuidar-se com psicoterapia e outras medidas afim de necessitar o mínimo possível o tratar-se farmacológico.
Vínculo torna-se assim a condução terapêutica da transferência, a partir da compreensão dos fenômenos transferenciais iniciais na relação médico-paciente, ou em outras palavras do estilo neurótico, perverso ou psicótico , ou outras nuances que se perceba.
Mantida pelo médico sabiamente positiva e levemente idealizada (como proposto por Fiorini para o papel do psicoterapeuta, cf. Fiorini 1991: 106-114), tal transferência busca assim catalisar o vínculo terapêutico nestas 10-15 consultas/sessões de um curso de tratamento farmacológico típico para quadros ansioso-depressivos.
Eis aí algo da antiga ars medica, conduzindo com seu discurso específico e atualizado do médico - nem o discurso do mestre nem o da universidade em Lacan a pessoa, não mais paciente, a regimes de vida mais saudáveis, ao restabelecimento ao equilíbrio devido, como queria a medicina grega.
Isto é particularmente difícil nas adicções graves, nas psicoses, junto às personalidades mais psicopáticas, porém bastante recompensador nas doenças ansiosas e depressivas, nas quais as condições transferenciais são em geral mais favoráveis ao vínculo e ao efeito pharmakon.
Notas
O autor é médico (Faculdade de Medicina da USP, FMUSP), especializado em Psiquiatria (H. das Clínicas da FMUSP), doutor em Filosofia (EHESS, Paris) com pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP). Clinica em consultório particular desde 1993. Agradeço a Sara Hassan, Silvia Ribes e Filipe Doutel pela contribuição crítica e bibliográfica. Email: brenoserson@terra.com.br
Referências bibliográficas
Calderoni, M. L. M. B. (2002) As origens da cisão entre medicina e palavra in Pscopatologia: vertentes, diálogos (D. Calderoni, org.). São Paulo: Via Lettera.
Carvalho, C. C. (2004) Do poder das palavras às palavras do poder, Revista Portuguesa de Psicossomática vol. 6, nº1 (55-62).
Coura, R. (2001) A Drugstore de Platão (os psicofármacos) in Psicofarmacologia e a Psicanálise, (M. C. R. Magalhães, org.). São Paulo: Escuta.
Derrida, J. (2005) A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras.
Eksterman, A. (1992) Psicossomática: o diálogo entre a Psicanálise e a Medicina in Psicossomática Hoje (Julio de Mello Fº, org.). Porto Alegre: Artes Médicas.
Fiorini, H. J. (1991) Teoria e técnica de Psicoterapias . Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Peirce, C. S. (1980) Peirce e Frege (Coleção Os Pensadores) São Paulo: Abril Cultural.
Platão (2005) Fédon. Fedro. Madrid: Alianza (na citação foram cotejadas outras traduções).
Viderman, S. (1990) A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta.
Zimerman, D. E. (1992) A formação psicológica do médico in Psicossomática Hoje (Julio de Mello Fº, org.), Porto Alegre: Artes Médicas.